terça-feira, 28 de outubro de 2008

A LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO: uma condição fundamental da aprendizagem!

O sentimento de liberdade de comunicação na sala de aula (1) é uma condição básica de uma frutuosa aprendizagem. Isso pressupõe a ausência de juízos precipitados por parte de pais e professores sobre o que está “errado” no que a criança diz (2). Se esta interioriza, que a expressão do que vai na sua mente tem um elevado risco de ser julgado como errado, tende a evitar esse juízo, calando-se. Na criança contrai-se o corpo e a mente em vez da expansão. O fluxo do pensamento e das ideias pára e a qualidade da aprendizagem fica mais pobre.

Qualquer comentário da criança pode ser incorporado na dinâmica da aprendizagem, sem juízos de valor negativos (3). Note-se que se a criança bloqueia a comunicação, não há lugar para as ideias menos boas mas também não há para as ideias brilhantes. E muitas das ideias “erradas” revelam uma elevada capacidade imaginativa - ao comunicá-las a criança expressa a sua criatividade e cria oportunidades de reflexão colectiva.

Recordo-me de uma aula de uma turma do 2º ano, em que a professora-estagiária abordava os meios de comunicação. A dada altura referia-se aos correios, tendo um aluno dito que costumava meter cartas no marco do correio para o pai, que estava em França. Perguntou então a professora como é que as cartas metidas no marco chegavam a França. O Luís (7 anos), tropeçando nas palavras, dizia com entusiasmo que “por baixo da terra os homens tinham feito um furo muito grande, que chegava até à França, e que as cartas iam por aí”.

Numa das aulas seguintes os alunos faziam bolinhas de plasticina e colocavam-nas na água de uma bacia, verificando o seu afundamento. Foi então colocado aos alunos a seguinte questão:

- Haverá alguma forma de fazer a plasticina flutuar?

Os alunos achatam a plasticina, fazem uma “salsicha”, fazem bonecos com pernas e braços, etc. Todas as tentativas resultavam infrutíferas, quando o Luís disse bem alto para todos:

- Vou fazer um “barco”!

Moldou uma concavidade na plasticina, colocou-a cuidadosamente na água e, para espanto e alegria de todos, a plasticina ficou a flutuar. Toda a turma se empenhava então a fazer “barquinhos” de plasticina.

O Luís era a mesma criança que imaginava um “furo” debaixo da terra para as cartas chegarem à França.

- Caro leitor, será então verdade que os corpos leves flutuam e os pesados vão ao fundo?
- Será verdade que um grão de areia é pesado e um navio é leve?
- Que dizem a isto os seus filhos?


1) Esta noção de liberdade não faz a apologia do professor sem autoridade; pelo contrário, a autoridade é indispensável em qualquer professor. Esta liberdade está ao serviço de uma clima de trabalho sério e responsável. As crianças são capazes de entender isto muito bem.
2) Pomos de parte considerações sobre os castigos corporais da escola salazarista.
3) Não consideramos aqui os exercícios gratuitos de exibicionismo ou de chamadas de atenção injustificadas.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O VULCÃO: "UM MONTE A PEGAR FOGO"!

Antigamente a escola presumia (e frequentemente ainda é assim) que, ao ser abordado um determinado tópico científico do currículo escolar, a mente da criança era uma espécie de receptáculo vazio, no que diz respeito a esse tópico. Competia então ao professor "verter" o conhecimento da lição para a mente da criança. Isso era (e ainda é frequentemente...) ensinar. A criança supostamente deixava entrar aquela informação na sua mente, mantendo-se muito atenta ao professor. Isso seria aprender.

Mas, para mostrar que tinha aprendido, basicamente o aluno tinha que memorizar os enunciados da lição, que estavam no livro, e depois repeti-los com as mesmas palavras (1). Por isso, para o professor, usar uma linguagem pessoal para dar a lição, ou simplesmente ler o livro na aula, é por vezes tido como indiferente.

Entretanto sabemos, já há bastante tempo, que a memorização sem compreensão não é aprendizagem (2). E sabemos também que a mente da criança não é o tal receptáculo vazio pronto a ser preenchido. Como foi referido em post anterior as crianças constróem de forma espontânea as suas teorias sobre o mundo físico natural que as rodeia (Ex:. o "penedo" que crese...).

Mas há uma nova realidade que precisa igualmente de ser considerada pelos professores:

A mente das crianças está recheada de grande quantidade de imagens, informação e conhecimentos resultantes da sua interacção com a TV e outros meios audio-visuais. E as crianças são capazes de compreender o significado de certos modelos representativos de uma realidade que não está directamente acessível.

Exemplo disso é o caso do vulcão: "um monte a pegar fogo".

É um facto que os fenómenos de vulcanismo não constituem uma realidade tangível no quotidiano crianças. Todavia constatou-se, numa turma de jardim-de-infância, que muitas crianças têm conhecimentos sobre esse assunto e desenvolvem boas aprendizagens a partir das ideias iniciais.

Enquanto observam cartões ilustrados com vulcões em actividade dizem:

- “há uma explosão e sai fumo”
(Rui, 5 anos);
- “parece um monte a pegar fogo”
(Patrícia, 5 anos).

Perante a proposta de um grupo de alunas-educadoras de construírem um (modelo) vulcão, uma criança manifesta receio dizendo que “é perigoso”. E ao longo do desenvolvimento da actividade incorporam facilmente os termos “vulcão” e “lava” e explicam que não gostariam de morar nas proximidades de um vulcão “porque a lava escorre pelo monte até às casas” (Patrícia, 5 anos) e que “a lava é perigosa porque queima” (Sara, 5 anos).

O momento em que o modelo de vulcão entra em erupção as crianças experimentam um misto de medo, curiosidade e encantamento.

1) Durante o meu ensino secundário nunca entendi nada acerca da Lei de Arquimedes e no entanto terei repetido vezes sem conta que "um corpo mergulhado no seio de um líquido, fica sujeito à acção de uma força vertical, dirigida de baixo para cima, de valor igual ao peso do volume de líquido deslocado". Perceberam? A ideia de "seio de um líquido" fazia-me muita confusão. Então o líquido tinha seios? E esta coisa de "peso de volume de líquido deslocado"? Um verdadeiro quebra cabeças! Estávamos no equivalente ao 9º ano de hoje. Mas acabávamos por perceber que "saber" era simplesmente dizer aquilo direitinho de cor, e o que parecia ser um quebra-cabeças deixava de o ser.

2) Mesmo na tabuada, que toda a gente deve saber de cor, não se pode dispensar a compreensão por parte do aluno de que quando diz 8x5=40, está a referir-se a uma soma de 5 parcelas iguais, de valor igual a 8. Lembro-me bem de que a tabuada era memorizada como uma música que se entoava em coro, sem essa compreensão.

domingo, 19 de outubro de 2008

Ciências para crianças:uma recomendação da UNESCO

A Ciência (…) pode ser realmente divertida. As crianças, em qualquer parte do mundo, ficam intrigadas com problemas simples, sejam eles problemas idealizados ou problemas reais identificados no mundo que os rodeia. Se o ensino das Ciências se centrar em tais problemas, explorando as vias de captar os interesses das crianças, nenhuma área curricular pode ser mais motivadora e mais estimulante para as crianças.

(in Harlen, 1983, Reunião de especialistas da UNESCO para o Ensino das Ciências na escola primária, 1980).

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O "penedo" que cresce! A Lua, uma amiga inseparável!

As crianças constroem de forma espontânea as suas teorias sobre o mundo físico natural que as rodeia. No processo de ensino importa perscrutar o pensamento da criança, desvendar essas ideias na sua mente e tomá-las como ponto de partida para promover a aprendizagem. A titulo de exemplo, apresentam-se a seguir dois textos que relatam recordações de infância do autor publicados em Sá, J. (2002). Renovar as Práticas no 1º Ciclo pela Via das Ciências da Natureza. Porto: Porto Ediora , 2º Edição. (pp 31-32)

O "penedo" que cresce!

Num esforço para buscar vagas recordações de infância, lembro-me do fascínio que sobre mim exerciam os "penedos" - rochas que emergiam do solo e patenteavam toda a sua imponência à margem das estradas que sulcavam as montanhas. " Este é mais velho do que aquele, está mais crescido", pensava para comigo. E quando uma pequena porção de rocha aflorava ainda ao nível do solo, era inevitável que "ali estava para nascer um penedo". Naturalmente, quando depois passava uma segunda vez junto de um "penedo" que me despertara a atenção, observava atentamente as suas proporções: "estaria já maior?" Se era já razoavelmente grande, estaria no estado adulto e tal como as pessoas teria deixado de crescer. Caso contrário, era notório que os "penedos" cresciam muito lentamente, de modo que não era perceptível o seu crescimento em curto espaço de tempo. Uma porção de rocha que não estivesse implantada no solo de forma visível não poderia crescer, não era sequer um "penedo".

É evidente que este "conhecimento" acerca dos "penedos" fora construído a partir da minha compreensão sensorial do comportamento das plantas. Por isso os "penedos" nascem e crescem. Se morriam ou não, já não me lembro. Isso requeria o conceito de vida nas plantas que provavelmente eu ainda não teria. Certo é que os "penedos" pareciam ser eternos, enquanto as plantas, pelo menos certas plantas, deixavam de existir ao fim de algum tempo. Na ausência da noção de que as plantas têm vida não poderia dizer que morriam.

A Lua, uma amiga inseparável!

Outra das minhas recordações tem a ver com a Lua. Que medo eu tinha, quando já noite escura, me pediam para fazer um recado qualquer. ( ...) Ah, mas se estava uma noite de luar não havia temor que me apoquentasse. Para além da claridade que afastava os fantasmas da escuridão, a Lua caminhava sempre a par comigo para onde quer que eu fosse. Era uma companheira inseparável. E quantas vezes eu corria o mais que podia para a deixar para trás e mostrar-lhe que seria capaz de chegar primeiro ao meu destino. Mas era em vão: eu corria, corria e ela lá ia sempre a meu lado. E era tão grande a sua lealdade que jamais me quis dar uma lição, correndo ela mais depressa e chegando primeiro. A Lua acompanhava-me para me proteger dos medos e fantasmas; era uma amiga leal e inseparável. Eu tinha para com ela um grande afecto.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Ainda a rã: observações, registos escritos, estratégias, medições e cálculos.

Depois da fase de observações e do registo escrito das mesmas, chegou a altura de os diferentes grupos comunicarem à turma o que tinham para dizer sobre a rã.

Foram referidas as seguintes observações:

- por baixo a rã é branca;
- as patas de trás têm uma membrana interdigital (novo vocábulo aprendido) entre os dedos;
- as patas de trás têm 10 dedos e as da frente têm 8;
- as pernas de trás são mais compridas do que as da frente;
- as pernas de trás funcionam como uma mola;
- têm os olhos salientes (novo vocábulo aprendido);
- a pele não é lisa, têm aspecto granulado (novo vocábulo aprendido);
- faz sempre movimentos com a garganta;
- mantém a cabeça fora da água para respirar;
- têm um risco longitudinal (novo vocábulo aprendido) ao meio das costas;
- faz movimentos na barriga ao respirar;
- a pele é viscosa
(novo vocábulo aprendido).

Os alunos explicam bem a finalidade das patas traseiras maiores e da membrana interdigital. Explicam que se não houvesse membrana, a água passava entre os dedos e era-lhe mais difícil nadar. Falam dos mergulhadores que usam barbatanas para nadar mais depressa e de animais que vivem em meio aquático: o pato e o pinguim.

A professora chama a atenção dos alunos para o movimento da garganta quando inspira e engole ar. É dada informação de que da rã não inspira com nós; aqueles movimento são para engolir ar. Depois a professora pede-lhes que façam de rãs e os alunos de forma divertida engolem ar.

O interesse dos alunos no que cada porta-voz do grupo está a dizer é bem patente quando lhe pedem que fale mais alto.

É introduzida uma nova questão:

- Será possível medir o salto da rã?

O Zé Pedro pergunta se se pretende medir o salto em altura ou em comprimento, tendo sido esclarecido que o que interessa é a distância percorrida em cada salto. Os alunos são solicitados a discutir em grupo a questão, por indicação da professora. Eles revelam nesta altura uma atitude investigativa e uma capacidade de discussão das questões em grupo que dá gosto ver.

Várias soluções foram propostas:

a) fazer uma marca no princípio do salto e outra no fim e medir a distância entre as marcas (esta solução foi sugerida em dois grupos);

b) o André Jorge sugeriu marcar a fita métrica no chão e depois pôr a rã sobre essa fita marcada no chão;

c) outra solução idêntica seria colocar a rã ao lado da fita.

Nestes dois últimos casos os alunos compreenderam a objecção de que a rã muito provavelmente não saltaria na direcção da fita métrica. Então, em alternativa a esta ideia, foi sugerido rodar a fita sobre o ponto fixo inicial para o ponto onde a rã ficasse após o salto.

Mas na discussão geral todos aceitaram que a melhor solução seria a das duas marcas, inicial e final. Os alunos vão então buscar giz e as fitas métricas e passam a fazer a medição dos saltos e os respectivos registos. Fazem-no com eficácia e uma visível satisfação. Cada grupo não se contenta com a medição de um salto e medem vários na tentativa de obterem o mais longo possível.

No final calculam as médias aritméticas dos diversos saltos medidos. De acordo com a aprendizagem anterior que já fizeram de média aritmética, neste caso a média será a distância de cada salto "como se os saltos fossem todos iguais". Resolvem com naturalidade as questões de cálculo propostas, havendo algumas dificuldades em fazer divisões de um número menor (caso em que a distância está expressa em metros) por um número maior. A professora considera que estas questões vieram ajudar a aperfeiçoar os cálculos que exigem o dividendo expresso em décimas/centésimas/milésimas.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

As crianças são a melhor fonte de conhecimento acerca do que é um ensino de qualidade - o caso da rã.


Era um aula em que uma turma de alunos do 4º ano fariam observações sobre rãs. Eu próprio, com a ajuda de um grupo de alunos as tínhamos ido buscar, na margem do rio Cávado e depois fui levá-las ao mesmo local.

Cada grupo tinha uma rã dentro de uma bacia com água - desse modo é facil mantê-las confinadas a esse espaço, evitando-se a desordem que seria vê-as saltar pela sala. A excitação dos alunos era grande. A professora começou por perguntar "o que vamos fazer com o animal"? Várias respostas: "vamos investigar"; "vamos observá-lo"; "vamos fazer o mesmo que com o caracol".

A professora sugere que durante cinco minutos observem e peguem a rã sem a molestarem. Observo que em dois grupos os alunos se dão conta de que a rã é mais escura fora da água do que dentro, algo que eu desconhecia e que prendeu a minha atenção. É visível o interesse e satisfação dos alunos em observarem, mexerem, pegarem nas rãs.

Passado esse tempo é dada a indicação para registarem o maior número de observações. Durante os registos os alunos interrogam-se acerca dos termos a utilizar e sobre como se escrevem. Quando não conseguem resolver as suas dificuldades quanto às palavras necessárias, pedem ajuda ao investigador ou à professora. (...) Num dos grupos viram a rã ao contrário para constatarem que tem a parte de baixo branca.

Os alunos estão completamente absorvidos e, estranhamente, há um clima de serenidade e silêncio que a mim próprio me surpreende. Não resisti, por isso, a pôr-lhes uma pergunta, ainda antes da discussão das observações:

- Imaginem que em vez de terem aqui as rãs dávamos esta aula de outra maneira. Eu dizia-vos por palavras como era a rã, escrevia no quadro para vocês copiarem e até podia fazer um desenho. Que acham vocês de uma aula assim?

Instantaneamente muitos braços se erguem no ar para pedirem a palavra, sendo algumas das respostas as seguintes:

- Nós ficávamos a saber que o Dr Sá sabe coisas acerca da rã mas nós ficávamos sem saber nada;

- O Dr Sá tinha observado uma rã e nós também queríamos observar para aprender como ele;

- Com a rã aqui na sala nós descobrimos por nós mesmos -
diz o Fernando enfatizando o significado das palavras com o gesto de bater com a mão no peito;

- Se o Dr Sá desse esta aula a escrever coisas no quadro nós perdíamos o interesse;

- A professora às vezes diz que desiste das aulas de Ciências por causa do barulho, mas se estas aulas fossem dadas só a escrever no quadro éramos nós que desistíamos.
(Tiago Filomeno, 9 anos).

Fiquei completamente siderado perante a impressionante força da mensagem expressa pelas crianças. Muita da psicologia da aprendizagem contida nos manuais estava ali, dita em palavras simples de crianças de 9/10 anos.

sábado, 11 de outubro de 2008

Tive pena de voltar para Portugal com os meus filhos.

Com a devida autorização, publico uma mensagem que uma colega da UM me enviou:

Professor

Desde que tive um filho no 1º ano da escola inglesa, onde a sala dele era o tal laboratorio de investigação de que fala na sua mensagem, tive sempre pena de ter voltado para Portugal com os meus filhos.

A sala deles tinha de tudo, para fazer medições de sólidos, medições de produtos a utilizar na cozinha, etc. Tinha livros, havia música, e também tinha as cadeiras, as mesas e um espaço amplo onde eles se sentavam em roda, no chão, para falar sobre o dia que chegava ao fim e planear o dia seguinte...

Não sei avaliar quanto isto era diferente de algumas salas que os meus filhos têm tido desde que voltei... Até as cadeiras e as mesas estão frequentemente partidas e não estavam adequadas ao tamanho deles…

Concordo inteiramente consigo e tenho pena que realmente não façam os meus filhos pensar, quando estudam matemática, e não consigam promover a motivação e o gosto dos meus filhos pela leitura.

Sou engenheira e por isso não sei se a minha linguagem exprime bem o que quero dizer em matéria de educação.

Mas, sentar os meus filhos em casa numa mesa a fazer coisas, e acabarmos por pegar em livros da estante, para ir buscar material, fazer trabalhos de recorte e contagem, fazer medições, ir pesquisar no computador, fazer qualquer coisa no computador para completar o trabalho, é simplesmente encantador para mim e para eles e, por isso, não entendo muito bem quando me falam em crianças desmotivadas.

E quando o meu filho me diz que o professor de ciências vai para a aula e quer que estejam calados enquanto ele lê o que está no livro….só me
apetece-me chorar.

Desculpe o meu à-vontade

Um abraço

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Aos meus colegas da Universidade do Minho


Caros colegas

Como pais todos nos interessamos pela educação dos nossos filhos, independentemente da nossa especialidade académica. Como investigador sobre esse nível de ensino, tenho a forte convicção de que é necessário promover uma consciência pública favorável a uma renovação do ensino do 1º ciclo, onde as aprendizagens permanecem a um nível muito pobre face às capacidades das crianças: é muito grande a discrepância e o que as crianças aprendem e o que seriam capazes de aprender. E não são exercícios de propaganda como o Magalhães, a que temos assistido, que vão mudar essa situação.

Em 1936, o Ministro de Educação de Salazar, Carneiro Pacheco, proclamava, em decreto-lei, que O ensino primário elementar trairia a sua missão se continuasse a sobrepor um estéril enciclopedismo racionalista, fatal para a saúde moral e física da criança, ao ideal prático e cristão de ensinar bem a ler, escrever e contar, e exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal. Essa herança continua lá, sob a forma de um ler, escrever e contar minimalista e mecanicista, segundo métodos que se transmitem de geração em geração.

São estas motivações que me levam a criar o blog http://geniociencia.blogspot.com/ de que vos dou conhecimento.

Deixo aos interessados o link do Repositorium http://hdl.handle.net/1822/8095 que dá acesso a um powerpoint que serviu de base à apresentação pública do Mestrado em Ensino Experimental das Ciências no Ensino Básico (1º ciclo).

Cordiais cumprimentos.
Joaquim Sá

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A invisibilidade do ar - um obstáculo intransponível?

No post anterior vimos que crianças com 5 anos revelam já a noção de que respiram e de que precisam de ar para respirar. Porém, Sutherland (1996), no seu livro O desenvolvimento cognitivo actual, escreve:

Aos 7 e 8 anos de idade, as crianças, geralmente, apercebem-se de que a respiração é essencial à vida humana. Mas foi apenas nos anos mais avançados do ensino primário que se aperceberam que o ar está envolvido no processo e que entra e sai constantemente. (1996: 209-210).

Mais adiante acrescenta o mesmo autor:

A invisibilidade do ar era um problema insuperável até chegarem aos anos mais avançados do ensino primário. (1996: 211).

Comentário:

Mesmo aos olhos de alguns pais mais atentos à educação e desenvolvimento dos seus filhos, tais afirmações carecem de fundamento. Bem antes dos 7/8 anos as crianças desenvolvem a noção de que precisam de respirar para viver. Por outro lado, a mais embrionária noção de respiração é indissociável da experiência pessoal da criança de inspirar e expirar, ou seja, o ar é parte intrínseca da sua noção de respiração.

A invisibilidade do ar não constitui obstáculo a que as crianças, bem antes do fim da escolaridade primária, adquiram muitos conhecimentos e a compreensão de variados fenómenos e factos que envolvem o ar.

Conclusão:

Há ideias que se tomam como absolutamente válidas em função da autoridade científica de determinado autor, em determinada época. Há muitas verdades "intemporais" que estão completamente falidas. E assim, corremos o risco de aceitar e impor aos outros como verdade científica, aquilo que a simples evidencia do quotidiano revela ser falso.

Sutherland, P. (1996). O Desenvolvimento Cognitivo Actual. Lisboa: Instituto Piaget.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

As crianças são contraditórias, mas tem apreço pela lógica.

Sabemos que as crianças são contraditórias, mas isso não significa que não têm apreço pela lógica. Como exemplo demonstrativo apresento-vos um diálogo que travei com um grupo de crianças de 5 anos. Iniciei a discussão com um frasco de viro na mão (ver http://hdl.handle.net/1822/8097):

- O que há dentro deste frasco?, perguntei.
- Não tem nada,
disseram.
- Nada? Já ouviram falar de ar?,
perguntei.
- Já.
- Há ar nesta sala?
- Não, só se abrirmos uma janela.
- Mas vocês respiram ou não dentro da sala?
- Sim, respiramos.
- E o que é preciso para vocês respirarem?
- Ar.
- Então o que é preciso haver na sala para vocês poderem respirar?
- É preciso ar.
- Então na sala há ar ou não?
- Há.
- E dentro deste frasco o que há?
- Tem ar.


Esta situação, a par de muitas outras ocorridas com crianças mais crescidas, põe em evidência o seguinte:

- a falta de lógica da criança tem as suas raízes na ausência de consciência das suas contradições.

Temos, porém, verificado que a criança tem um grande apreço pela lógica, e empenha-se na eliminação da contradição logo que toma consciência dela. A tomada de consciência das contradições e incongruências do seu pensamento, por parte da criança, tem uma importância nuclear na promoção do seu raciocínio lógico. Para isso tem um papel fundamental o desenvolvimento de competências da estimulação reflexiva do adulto. Um dos importantes aspectos desse processo consiste em ajudar a criança a trazer à consciência conhecimentos do quotidiano que já possui, permitindo que ela os confronte com as ideias que está a expressar numa situação de aprendizagem.

É muito corrente as crianças tratarem o conhecimento do quotidiano como dissociado das situações escolares de aprendizagem. Neste caso, as crianças têm já o conhecimento de que respiram e de que precisam de ar para respirar. Todavia, não recorrem a esses conhecimentos para responder se há ar na sala e respondem de forma contraditória com o seu próprio conhecimento.

A este propósito vale a pena evocar do conceito de memória de trabalho (Damásio, 1995). Corresponde à quantidade de informação, imagens, conhecimentos, etc. que são mobilizados em simultâneo e se mantêm activados na mente enquanto o sujeito se confronta com uma questão ou problema. Neste caso, de início os conhecimentos sobre a relação entre ar e respiração estavam fora da memória de trabalho da criança. O questionamento do adulto ajudou a criança a ampliar a sua memória de trabalho, ficando apta a fazer face à questão. Assim foi resolvida a contradição entre o conhecimento que a criança já possuía e a sua ideia inicial de que não existia ar na sala.

domingo, 5 de outubro de 2008

CRIANÇAS, sujeitos reflexivos na aprendizagem! É POSSÍVEL?

Vasculhando alguns documentos antigos, tropecei no texto da intervenção que fiz na sessão pública de apresentação do livro Crianças Aprendem a pensar Ciências: uma abordagem interdisciplinar - Projecto ENEXP (a apresentação do livro esteve a cargo da Professora Maria Odete Valente do Dep. Educação da FCL). Transcrevo aqui as palavras que então proferi (Outubro de 2004), persistindo assim na ideia de que é necessário impulsionar um movimento transformador na educação do país.

Permitam-me que vos diga algumas breves palavras acerca das motivações que estiveram no origem do Projecto ENEXP, do qual resultou a publicação deste livro. Do meu ponto de vista permanece actual a seguinte questão:

- Será que a ideia de uma aprendizagem em que as crianças são sujeitos reflexivos, construtores de ideias e conhecimento, é uma figura de retórica ou é de facto algo que pode tornar-se uma realidade tangível na sala de aula?

O "sim" parece a resposta politicamente correcta, mas é minha convicção que são poucas as pessoas que no seu íntimo acreditam nisso. Frequentemente isso diz-se nos meios académicos porque é assim que "deve ser"...

Penso que prevalece o reconhecimento tácito de que aquela perspectiva não passa de uma ingenuidade, talvez uma ideologia romântica que não resiste ao mais elementar confronto com a realidade. Por vezes admite-se que, com alunos muito inteligentes e em turmas muito pequenas, aquele pensamento pedagógico poderia tornar-se realidade.

Eu não posso deixar de concordar que não é fácil acreditar-se na viabilidade de um ensino em que as crianças, de forma responsável e numa atmosfera de liberdade e comunicação, testam e criam ideias a partir das actividades experimentais, explicitam-nas, reflectem sobre elas, discutem-nas seriamente e, sob orientação do professor, chegam a um consenso em torno da melhor ideia: o conhecimento adquirido. Não é fácil acreditar-se porque essa visão do ensino e da aprendizagem contrasta com a representação que temos de nós próprios como alunos-aprendizes, é algo que não vivenciámos, que não observámos, algo que se afigura afinal estranho e contrário à nossa experiência de vida como estudantes.

Eu só passei realmente a acreditar na perspectiva construtivista e reflexiva da aprendizagem por experiência vivida e partilhada com os alunos, em salas de aula do 1º ciclo, a partir do início dos anos 90. E nessa experiência, as mais optimistas expectativas foram superadas; tive que me libertar de muitas ideias sobre o que é suposto que as crianças sejam capazes de aprender e pensar.

Ficou assim adquirida a convicção de que as experiências de aprendizagem, que tinham sido proporcionadas, eram sentidas como muito importantes pelas crianças e tinham um elevado potencial educativo.

Comecei então a preocupar-me com a operacionalização das práticas de ensino que podem induzir nos alunos um esforço voluntário e autoregulado de pensamento e acção - o questionamento reflexivo é uma competência fundamental do professor.

As "planificações", os enunciado de objectivos e metodologias elucidam-nos muito pouco acerca da natureza das práticas (*). Comecei então a achar importante fazer a narrativa escrita de boas práticas: contar uma aula como quem conta uma história, apresentando os acontecimentos na sua sequência natural, referindo os personagens, as suas acções e partes do seu discurso, dando ênfase a incidentes relevantes, que se tornam objecto de reflexão. Assim se desenvolveu uma poderosa metodologia - os diários de aula - em que os meus alunos têm sido treinados como forma de relatarem e avaliarem as suas práticas. Um bom diário de aula permite ao leitor sentir a atmosfera da aula, visualizar os protagonistas da aprendizagem em acção, fornecendo-lhe assim as bases para replicar um processo semelhante.

O projecto Ensino Experimental – aprender a pensar (Projecto ENEXP) tem como motivação fundamental validar instrumentos que ajudem os professores a construírem boas práticas de ensino experimental reflexivo. O projecto tinha como finalidade conceber e testar na sala de aula guias de ensino experimental das ciências para os primeiros 4 anos de escolaridade. Essas ideias estão expressas num livro que foi enviado ao ex-ministro de Educação Professor Marçal Grilo, tendo este reagido com o apoio e incentivo que me foram transmitidos em audiência para a qual fui convidado.

Mas um projecto tão ambicioso requeria uma equipa muito sólida, recursos apropriados e um sério compromisso - uma verdadeira task-force. Tivemos essa expectativa que não se concretizou. Fizemos o que nos foi possível, cumprindo apenas a parte do projecto correspondente ao 1º ano de escolaridade.

Este livro tem um carácter conceptual e metodológico acerca do projecto; seguir-se-á um outro com publicação dos 8 guias de ensino que foram testados no 1º ano de escolaridade [publicado em 2007].

Obrigado a todos pela vossa presença.

O Magalhães: a vertigem tecnológica dos "ricos" que continuam pobres!

Assino por baixo o que escreve José Pacheco Pereira no Público em 27/09/08:


Há várias perguntas de fundo a fazer, que deveriam ter sido feitas e cuja resposta deveria ser prévia às sessões de propaganda para a televisão. A primeira e mais fundamental das perguntas é a de saber se a distribuição de computadores individuais para as crianças do ensino básico tem sentido pedagógico e utilidade no combate à info-exclusão. Sobre isto a maioria dos pedagogos responde não à primeira e a maioria dos estudos responde também não à segunda questão. Não é unânime a resposta, mas existem muitas dúvidas. Um relatório do Departamento de Educação americano é explícito: "A tecnologia parece ser completamente irrelevante quando se trata de ajudar estudantes a melhorarem os seus níveis de aproveitamento académico." É que nestas coisas nem tudo o que parece evidente para os deslumbrados dos gadgets é verdadeiro.

Não é líquido que um computador individual na sala de aula do ensino básico (o problema é diferente para outros níveis de ensino) possa beneficiar a aquisição das competências básicas, em particular na leitura e na matemática. No caso da leitura é claramente contraproducente, afastando as crianças da leitura "plana", corrida, na fluência do texto, fundamental na ficção e na poesia, a favor de uma leitura em volume, com o uso do hipertexto, com outras virtualidades, mas que não substituem a leitura "literária".(...)A questão essencial é que todas as crianças tenham facilidade de contacto com os computadores, não é ter um computador individual nesta faixa etária. Desse ponto de vista, tem muito mais sentido facilitar a presença de computadores em casa para a família...

E a propósito acrescento o que eu escrevi em 1996, na minha Tese de Doutoramento (http://hdl.handle.net/1822/8165):

Ao longo de anos, tivemos a oportunidade de constatar que as escolas do 1º ciclo de hoje oferecem as mesmas condições de ensino que as escolas frequentadas pelo investigador, há mais de 30 anos. Igualmente se constata que as práticas não sofreram grandes alterações: o livro, lápis e papel (em substituição da lousa de outros tempos) continuam a ser os materiais didácticos praticamente exclusivos. As crianças raramente vêem uma balança e massas marcadas quando lhes são ensinadas as unidades de massa; raramente vêem a medida de litro e seus submúltiplos quando estas noções lhes são ensinadas; aprendem mecanicamente a andar com vírgulas para esquerda e para a direita, sem nunca (...) constatarem experimentalmente que 1 litro é equivalente a 10 decilitros.

Mais recentemente, retomo o assunto em livro publicado em 2007:

Por isso, as nossas crianças não têm a oportunidade de desenvolver os conceitos primários que se constroem na relação directa com os objectos concretos, manipulando-os, sentindo-os e experimentando-os. Sem os conceitos primários faltam os alicerces para a construção do edifício de conceitos indispensáveis à cidadania e a uma formação profissional de qualidade. Grande parte dos alunos universitários, que se vão tornando professores, não sabe se 5 cm3 está mais próximo da capacidade de uma colher de sopa ou da de um garrafão, pela mesma razão que grande parte dos alunos do 4º ano do 1º ciclo não o sabem.

Comentário final:

O Magalhães bem poderá ser um brinquedo, capaz de servir à criança mais um pedaço de vivência virtual, distraindo-a de uma interacção reflexiva com o mundo real, processo insubstituível na construção das aprendizagem básicas. E quanto aos professores, o Magalhães semeia uma mensagem de confusão e desorientação pedagógica.

Estaremos por ventura a esquecer que um cubo, desenhado no monitor de um computador, não passará de um conjunto de linhas num plano, se a criança não o tiver manuseado, sentindo-lhe a forma, o espaço que ocupa, as arestas, as faces, os vértices, a textura, etc?

Será que as crianças que vão ter um "Magalhães", só para si, têm ao seu dispor uma caixa de sólidos geométricos (como o dito cubo), por exemplo?

Recomendo vivamente ao Sr Primeiro-Ministro que mande averiguar quantas escolas do 1º ciclo não têm uma coisa tão simples e barata como essa caixa de madeira. Algo singelo, pedagogicamente importante, como outras coisas simples que lá não estão... que, todavia, jamais justificarão o espectáculo mediático de propaganda.