quinta-feira, 9 de julho de 2009

Manipulação e Controlo de Variáveis no Ensino Experimental das Ciências no 1º Ciclo: algumas reflexões fundadas na investigação.

Por diferentes meios, vem ganhando terreno a ideia de que as actividades experimentais de eleição, no ensino das ciências no 1º ciclo do ensino básico, devem ser os “ensaios controlados, ou seja, actividades que envolvem manipulação e controlo de variáveis”. Por exemplo, no guião sobre Dissolução em Líquidos, para professores do Programa de Formação Contínua de Professores do 1º Ciclo em Ensino Experimental das Ciências, promovido pelo Ministério da Educação, são formuladas 7 questões-problema. Em cada questão pretende-se que os alunos investiguem, sob orientação do professor, a influência de diferentes factores no tempo de dissolução de um rebuçado. Sendo o tempo de dissolução a variável dependente, nas diferentes investigações as variáveis independentes são, sucessivamente: o tamanho do rebuçado, o tipo de rebuçado, o estado de divisão do rebuçado, a quantidade de líquido, a forma de agitação da mistura, a temperatura e o tipo de líquido. Lê-se na pág. 19:

Cada questão diz respeito ao estudo da influência de uma variável independente na dissolução de rebuçados (solutos) através do tempo necessário para a sua dissolução completa (…). Por isso é fundamental que as crianças reconheçam que a resposta a cada uma das questões só será válida se a experiência for conduzida controlando as restantes variáveis – ensaio controlado.

1. Análise do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo dos alunos

Para a condução da actividade em sala de aula são sugeridas as seguintes questões a formular pelo professor: a) o que vamos mudar? (VI); b) o que vamos medir? (VD); c) o que vamos manter e como? (VC); d) como vamos registar?; e) o que pensamos que vai acontecer e porquê?; f) o que e como vamos fazer?

Significa isto que os alunos do 1º ciclo (não é feita nenhuma indicação específica quanto ao ano de escolaridade em que tais actividades são mais recomendáveis), deverão antecipar mentalmente um conjunto de acções e procedimentos que envolvem a identificação de uma variável dependente, escolher em cada caso qual das variáveis será tratada como independente, e reconhecer que haverá necessidade de controlar 5 variáveis, devendo indicar ou pelo menos compreender o procedimento de controlo. E são 7 os problemas a investigar seguindo este padrão.

Eu investiguei aturadamente este problema de educação científica, em duas turmas do 4º ano de escolaridade, entre 1992 e 1994; é pois meu dever cívico e de consciência, tornar público o meu pensamento sobre esta matéria, com toda a seriedade.

Uma dimensão muito crítica na planificação de uma investigação desta natureza é a reduzida memória de trabalho dos alunos, nesta idade. A memória de trabalho é o conjunto de informações, ideias, imagens que o aluno precisa ter activados na sua mente, de forma simultânea e durante um certo período de tempo, para os manipular e relacionar adequadamente em construções cognitivas de nível elevado, como é por exemplo a (estratégia de) solução para um problema. Em termos mais práticos, a memória de trabalho corresponde à necessidade de o aluno manter uma consciência clara do problema em investigação, ao longo de todos os passos da elaboração do plano, bem como durante a sua execução, tendo sempre a noção do sentido de cada tarefa no contexto global da investigação, por forma a utilizar os dados recolhidos, interpretá-los e com essa interpretação dar a resposta consciente à questão de partida.

Sobre este tipo de exigência intelectual, ainda antes de falarmos dos alunos do 1º ciclo, posso desde já afirmar que a clareza mental de um fio condutor, que não se perde no caminho de atalhos por que passa o processo, mantendo-se viva desde o princípio até ao fim para voltar ao princípio, é algo que a grande maioria dos meus alunos da formação inicial (educadores e professores) não consegue adquirir. E não conseguem porque não estão treinados a pensar e isso coloca-lhes uma exigência de esforço intelectual que não são capazes ou não estão dispostos a fazer. Portanto, a primeira dificuldade neste tipo de abordagem estará nos próprios professores.

Voltando aos alunos, eles poderão dar respostas às questões sugeridas, acertando umas e errando outras, corrigirão com a ajuda de outras questões (por adivinhação ou por compreensão), mas o sentido global do conjunto das suas respostas parciais vai-se perdendo e no final, dificilmente se lembram do problema inicial. É ilusório esperar-se que o aluno tenha um plano de investigação em mente e o execute, porque o sentido pessoal e a compreensão perderam-se pelo caminho, apesar da muita ajuda do adulto. A transição do pensamento directamente ligado à acção e objectos para um estádio de pensamento abstracto em forma de antecipação mental da acção para a sua posterior execução, é complexa e processa-se de forma lenta e gradual.

É preciso dizer com clareza que tal padrão de raciocínio requer estruturas cognitivas do domínio das operações formais, do ponto de vista da teoria de desenvolvimento cognitivo de Piaget, cujo início se prevê pelos 12 anos. As actividades investigação que envolvem manipulação e controle de variáveis equivalem ao raciocínio hipotético-dedutivo, que requer a capacidade de dissociar os factores que fazem parte de um todo, imaginar o efeito possível de um factor sobre outro (hipótese), quando são verificadas certas condições, que devem ser estabelecidas (saber quais as variáveis a controlar e como o fazer). E só se passa à acção depois deste raciocínio baseado em enunciados abstractos, que continuam a fazer parte integrante da acção.

Embora tenhamos resultados de investigação que antecipam os estádios de desenvolvimento conceptual piagetianos em vários domínios (à semelhança de outros autores), consideramos que este tipo de proposta didáctica coloca um patamar de exigência cognitiva de partida que não está ao alcance dos alunos do 1º ciclo. Numa pespectiva vygotskiana, dir-se-á que a tarefa colocada à criança situa-se acima do limite superior da zona de desenvolvimento proximal, o que equivale a dizer que cai claramente fora do alcance cognitivo do aluno. Em vez do envolvimento intelectual e sócio-afectivo desejável gera-se a indiferença e a desmotivação.

Da minha experiência de trabalho directo com as crianças, posso dizer que alunos do 4º ano reconhecem com facilidade que há algo de errado numa investigação sobre o crescimento das plantas, em que uma planta seja colocada ao sol e não regada, e outra seja colocada num armário e regada. Elas sabem que a luz solar e a água são ambas importantes para o desenvolvimento de uma planta e, reflectindo, compreendem que se está a comparar algo que não é comparável: efeito do sol sem água e efeito da ausência do sol com água . A partir de exemplos de não controlo podem chegar à compreensão da necessidade de controlo. Todavia, se pretendermos que sejam capazes de planificar e executar investigações controladas, crianças de 10 anos só o poderão fazer depois de um intenso treino cognitivo.

2. Análise do ponto de vista da natureza da abordagem das ciências experimentais no 1º ciclo

Temos que nos interrogar sobre o sentido que faz para as crianças uma investigação exaustiva da influência das diversas variáveis sobre um determinado fenómeno, sem se chegar a fazer o enfoque do estudo no próprio fenómeno.

A investigação sobre em que medida o tempo de dissolução de um rebuçado é influenciado pelas variáveis (tipo de rebuçado, estado de divisão, quantidade de solvente, temperatura do solvente, agitação da mistura, tipo de solvente), não se preocupa com o fenómeno de dissolução.

Que significado, que modelo mental é o aluno capaz de construir para tornar inteligível na sua mente o facto de o solvente se ter transformado ou ter mesmo deixado de se ver (caso das soluções transparentes)? Com esse modelo mental (logo no 1º ano os alunos constróem modelos de grande valor epistemológico no processo de evolução conceptual) poderá o aluno fazer conjecturas explicativas para a influência de uma determinada variável no processo de dissolução? Que definição é o aluno capaz de dar/comprender para o fenómeno de dissolução? Do meu ponto de vista é por aí que se deve começar.

Importa ainda ter-se na devida consideração o facto de as crianças, depois de eventualmente terem estudado a influência de um factor sobre um fenómeno, sentirem-se entediadas com o sentimento de repetição, ao passarem ao estudo de um outro factor, sobre o mesmo fenómeno, e depois outro e outro....

Na conjugação das objecções apontadas, do meu ponto de vista esta abordagem tende a fazer da ciência para crianças num engenharia mecanicista de exercícios repetitivos em volta das variáveis a manipular e controlar. Por isso não a recomendo.

Essa perspectiva, que se pretende agora introduzir de forma generalizada, por via das recomendações das Comissões de Certificação dos manuais escolares, nomeadas pelo Ministério da Educação (tive oportunidade de ler alguns relatórios de apreciação de manuais escolares), carece de uma melhor ponderação, sob o ponto de vista da sua adequação ao desenvolvimento cognitivo dos alunos, bem como da natureza da abordagem do ensino experimental das ciências no 1º ciclo. Pretende-se que o ensino experimental das ciências no 1º ciclo proporcine actividades de aprendizagem pessoalmente significativas, relevantes, motivadoras e intelectualmente estimulante para as crianças. Essa matéria deveria pois ser objecto de um debate e reflexão imbuídos de cultura científica, livre de quaisquer condicionamentos das lógicas de poder. É urgente encarar-se a Educação com uma cultura científica.

Faço notar que no livro Renovar as Práticas no 1º Ciclo pela Via das Ciências da Natureza (Sá, 1994, 2002), estão apresentadas várias actividades de investigação do tipo “ensaio controlado”, todavia é necessário atender ao que está escrito no prefácio:

(…) o conjunto de actividades do IV capítulo deve ser visto como um programa de desenvolvimento de competências de pensamento. Com efeito essas actividades foram implementadas em duas turmas de alunos do 4º ano, na sequência em que estão apresentadas e, consequentemente, a crescente complexidade das questões e problemas a serem investigados acompanha o amadurecimento inerente ao efeito cumulativo do treino a que os alunos foram submetidos. Quer isto dizer que aí estão contempladas algumas actividades que não são susceptíveis de serem apresentadas a uma turma como acto isolado, em particular as actividades de investigação que envolvem uma planificação prévia, por parte dos alunos, em que têm que manipular uma variável independente, uma variável dependente e variáveis de controlo. Tais actividades de investigação requerem operações mentais ao nível do pensamento formal e, por isso, não estariam ao alcance das crianças desta idade (Sá, 2002:11)

Acresce dizer-se que este tipo de treino dos alunos só está ao alcance de alguém especializado, sendo certo que a cultura profissional dos professores não lhes permite a recepção de tais propostas didácticas, sob a forma de orientações normativas que seriam obrigados a seguir. Só de uma forma bastante mitigada e em situações familiares, deverão as propostas de ensaio controlado ser recomendadas nos manuais escolares.

3. Análise do ponto de vista da autonomia do aluno na investigação experimental

Na crítica aos manuais escolares é frequente as Comissões de Certificação dizerem nos seus pareceres: “…não promovem a planificação da actividade pelo próprio alunos..” Concordo com a crítica. Porém, a “planificação das actividades pelos próprios alunos” comporta o risco de uma interpretação simplista, que perde de vista todo o complexo trabalho de orientação, questionamento e estímulo sustentados, da parte do professor, na promoção dessa autonomia. É preciso conhecer a cultura profissional dos professores, as suas práticas e a natureza da formação que se faz, para se ponderar devidamente a natureza da recepção de que uma dada orientação vai ser alvo. A construção de um certo grau de autonomia na aprendizagem é um desafio de grande complexidade para os professores. Não é difícil conseguir esse resultado nos alunos, mas é muito difícil a aquisição das competências para esse efeito, nos professores. Mas a escolástica nebulosa desfoca o olhar do essencial, fecha caminhos e torna "impossível" o que é transformador.

Para uma melhor compreensão e aprofundamento destas questões recomendo a consulta da Tese de Doutoramento (Sá, 1996) disponível on line em http://hdl.handle.net/1822/8165 - seleccionar capítulo 4 e procurar as secções seguintes:

3.4.2. Conclusões acerca do desenvolvimento de competências de investigação na turma 92/93
3.4.3. Perspectiva evolutiva do desenvolvimento de competências de investigação na turma 93/94
3.4.4. Conclusões acerca do desenvolvimento de competências de investigação na turma 93/94
3.4.5. A turma 93/94 versus turma 92/93 quanto ao desenvolvimento de competências de investigação
3.5. Papel do investigador e/ou professora

Trata-se de um trabalho de investigação conduzido em duas turmas do 4º ano, com 64 horas de ensino das ciências em cada uma. Neste trabalho designamos por “investigação” a actividade do tipo “ensaios controlados, ou seja, manipulação e controlo de variáveis”.

Joaquim Sá (jgsa@iec.uminho.pt)

Director do Mestrado em Ensino Experimental das Ciências no Ensino Básico - Universidade do Minho

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Flutuação: Peso e Impulsão ou densidade do corpo e densidade do líquido?

Até aqui ainda não falámos da flutuação em termos da densidade do corpo e da densidade do fluido (líquido ou gás). Pela minha experiência, depois de actividades de ensino experimental adequadas, crianças do 4º ano são capazes de prever que dados dois corpos com o mesmo peso (e massa), com volumes diferentes, se um dos corpos flutua esse será o maior deles. Todavia o conceito de densidade é complexo para as crianças do 1º ciclo, não sendo recomendável, do meu ponto de vista, enveredar por explicações que passem po aí. Mas é importante que os professores conheçam bem o princípio de Arquimedes que envolve a densidade e poderão então explorar até onde podem as crianças ir. É frequente em situações práticas o afloramento na mente das crianças de um noção qualitativa e intuitiva de densidade, como já relatei num dos meus livros.

A densidade é uma medida da concentração da matéria num corpo ou material, sendo dada pela divisão entre a massa e o volume (m/v). A densidade da água, por exemplo, é de 1g/cm3. Quando comprimimos uma certa quantidade de ar dentro de uma seringa, estamos a diminiuir-lhe o volume, mantendo-se igual a massa. Isso significa que a densidade do ar é maior quando empurramos o êmbolo para baixo do que quando puxamos o êmbolo para cima.

É frequente a ocorrência de explicações sobre a flutuação, ora com recurso ao peso e impulsão, ora com recurso à densidade do corpo e à densidade do líquido, como se de duas explicações diferentes se tratasse. É importante sublinhar que se trata da mesma explicação, ou, melhor dizendo, a relação de grandeza entre as densidades é uma consequência matemática da relação de grandeza entre o peso e a impulsão.

Com efeito, se considerarmos o corpo inteiramente mergulhado no fluido (volume do corpo imerso igual ao volume do próprio corpo: Vci=Vc), a relação de grandeza entre o peso do corpo e a impulsão é equivalente à relação de grandeza entre a densidade do corpo e a densidade do fluido.


Vejamos.

De acordo com o princípio de Arquimedes, o valor da impulsão (I) é igual ao peso do fluido deslocado pelo corpo. Tratando-se de um líquido, calcula-se o peso do volume de líquido deslocado pelo corpo. Teremos então:

I = dl .Vc . g

E quanto ao peso (P) teremos

P = dc .Vc . g

dl - densidade do líquido
dc – densidade do corpo
Vc – volume do corpo
g – aceleração da gravidade

Conjugando I e P assim definidas matematicamente,

P > I → dc .Vc . g > dl .Vc. g → dc > dl → corpo afunda-se
e
P <>

Se teve dificuldade em compreender estas deduções matemáticas, atente fundamentalmente no seguinte: quando o peso do corpo é superior à impulsão verifica-se também que a densidade do corpo é superior à densidade do fluido: o corpo afunda-se; quando o peso do corpo é inferior à impulsão verifica-se também que a densidade do corpo é inferior à densidade do fluido: o corpo sobe até à superfície e fica a flutuar. Quando ocorre a flutuação o peso e a impulsão tornam-se iguais (a impulsão, que era superior ao peso, diminui quanto o corpo fica parcialmente fora da água).