segunda-feira, 18 de maio de 2009

FLUTUAR-AFUNDAR: concepções da criança V

[Continuação de FLUTUAR-AFUNDAR: concepções da criança IV]

Reflexão crítica: um renovado olhar…

Os alunos do 4º ano de escolaridade, depois das experiências de flutuação da bolinha de papel de alumínio e do seu afundamento (após a compressão do papel de alumínio - diminuição de volume), manifestam, aquando da dicussão, muitas dúvidas e incertezas quanto à equivalência de significados entre a conservação da quantidade de matéria e a conservação do peso1. O Tiago, um aluno especialmente reflexivo e inteligente, não está convencido de que há conservação do peso, que ficou igual. Ou seja, não reconhece que a variável peso foi controlada, por forma a deduzir que a diminuição do volume é a causa do afundamento. Apenas um aluno se pronuncia no sentido da conservação do peso, e sobre essa opinião há a concordância tácita de outros - não foi possível ao investigador recolher verbalizações explícitas do seu pensamento. Do ponto de vista do adulto, a uma quantidade de matéria constante (não acrescentei, nem retirei) equivale um peso constante, mas não é assim do ponto de vista das crianças. Isto obriga-nos a reflectir um pouco mais à luz das teses de Piaget & Inhelder (1971) sobre o desenvolvimento das noções de conservação de substância, de peso e volume. Segundo estes autores:

no curso de uma primeira etapa (até cerca de 7-8 anos, em média), a criança não admite a conservação de substância, nem a do peso nem a do volume; durante a segunda (de 8 a 10 anos, em média), ela admite a conservação da substância mas não a do peso nem a do volume; durante a terceira etapa (de 10 a 11-12 anos, em média), admite a da substância e a do peso, mas não ainda a do volume; por fim, a partir da quarta etapa (ou seja a partir dos 11-12 anos), ela admite simultaneamente as três formas de conservação. (Piaget & Inhelder, 1971: 37).

Quer isto dizer que uma determinada quantidade de água é vista como variável pelas crianças de 7-8 anos, ao passar por diferentes recipientes (1 litro de água, é "mais" água num recipiente estreito do que num recipiente largo - a criança toma o nível como indicador da quantidade); pelos 8-10 anos a criança reconhece que nesse processo de transvaze a quantidade de água se mantém constante, mas que o seu peso e o seu volume variam; pelos 10 a 11-12 anos desenvolve-se a noção de conservação do peso; e a partir dos 11-12 anos adquire a conservação do volume, passando a criança a dominar as três formas de conservação. Do ponto de vista do desenvolvimento psicológico da criança as noções de conservação da matéria, do peso e do volume têm valores cognitivos diferentes, numa ordem crescente da primeira para a última.

Os alunos do estudo a que nos vimos referindo têm entre 9 e 10 anos e apenas alguns têm já 10 anos de idade. Ou seja, do ponto de vista daqueles autores a maioria deles situar-se-ia na metade superior do intervalo da conservação da matéria (8-10 anos) e uns poucos situar-se-iam no início do intervalo de conservação do peso (10 a 11-12 anos).

Diversos estudos de inspiração Vygostskiana2 demonstram que o desenvolvimento das estruturas cognitivas e de estádios conceptuais podem ser antecipados em relação às idades preconizadas por Piaget3, por via de situações de aprendizagem apropriadas. Todavia, a progressão possível não é arbitrária. No caso em análise seria necessária uma antecipação da noção de conservação do peso em 2 a 3 anos. E todavia, os alunos não beneficiaram de um processo de aprendizagem especificamente orientado para o desenvolvimento da noção de conservação do peso.

Conjugando os dados recolhidos com a visão Piagetiana, concluímos que, só a título muito excepcional, poderá algum aluno incorporar a noção de que o peso se mantém constante, no seu raciocínio sobre o fenómeno de afundamento do papel de alumínio, depois de comprimido. À luz desta reflexão, assumimos que a questão Ao apertar a bolinha de papel de alumínio tirei (ou não) papel? pode-nos esclarecer quanto à compreensão de que a quantidade de matéria é constante, mas não quanto à conservação de que o peso é constante. Adiante voltaremos a esta questão.


1 Massa e peso são conceitos científicos distintos. A massa de um corpo é a medida da quantidade de matéria de que é feito; a massa permanece constante, qualquer que seja o lugar em que o corpo se encontre e por isso é uma característica desse corpo. O peso é a força com um corpo que é atraído para a Terra; essa força aumenta com a diminuição da distância entre o corpo e o centro do planeta. Por isso, o peso diminui com a altitude e aumenta do equador para os pólos (o achatamento dos pólos diminui a distância ao centro da Terra). Sendo variável em função do lugar, o peso não é uma característica do corpo. Porém, num determinado lugar, o peso tem um valor constante que depende apenas da quantidade de matéria do corpo. É por isso que para um determinado lugar é legítimo estabelecer-se a equivalência entre peso e massa. Esta diferença conceptual, do ponto de vista científico, corresponde também a uma diferença entre quantidade de matéria e peso, do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo da criança.
2 A actividade sócio-cognitiva que acompanha o processo de aprendizagem, bem como o produto da aprendizagem, promovem o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (Vygotsky, 1987; 1998).
3 Ver a título de exemplo o desenvolvimento do conceito de “ser vivo” no âmbito do Projecto ENEXP (Sá com Varela, 2004).


[Continuação em Flutuar-afundar: concepções da criança V]

segunda-feira, 11 de maio de 2009

FLUTUAR-AFUNDAR: concepções da criança IV

[Continuação de Flutuar-afundar: concepções da criança III]

A) A bolinha de papel de alumínio
(continuação)

Os alunos são convidados a comprimir bem a bolinha de papel de alumínio e a verificarem experimentalmente o seu comportamento na água. Depois da observação de afundamento (antes flutuava) segue-se um processo de reflexão.

Questão 3

– O peso da folha de alumínio ficou diferente?

A Rita (9 anos) comenta: afundou-se porque não tem ar. Pergunto se o peso da folha de alumínio se alterou. Segundo o Tiago (9 anos) ficou inferior; a Rita (9 anos) é de opinião contrária: ficou superior; o Zé Pedro (10 anos) e o Tiago (9 anos) introduzem a variável volume do corpo: o volume ficou inferior; a Sofia (10 anos) discorda: o volume ficou igual. (…) O Fernando (10 anos) afirma que o peso não é o mesmo porque senão ficava a flutuar, só se depender do volume. Este aluno acaba de introduzir a possibilidade de a flutuação depender da coordenação entre peso e volume do corpo, porém não tem ainda a noção de conservação do peso. Alguém diz ainda que o ar faz que a bola tenha menos peso (situação inicial). (…)

Análise interpretativa

O Tiago, que é um dos melhores alunos, parece estar a pensar no volume (a questão referia-se ao peso) ao afirmar que ficou inferior. Logo adiante ele afirma que o volume ficou inferior, o que é revelador da dificuldade em se pronunciar sobre o peso, preferindo pronunciar-se sobre algo que para si está claro: a diminuição volume. O Fernando sustenta que houve variação do peso (senão ficava a flutuar), mas considera também que o peso pode constante se a variação de volume tiver influência na flutuação (na mente do aluno estará a diminuiçaõ de volume). A Rita, ao ver papel de alumínio afundar-se, diz que o peso ficou superior, o que corresponde à utilização do esquema leve-flutua/pesado-afunda. Talvez a Sofia fale do volume pensando no peso, pois é notório que o material foi comprimido: o volume ficou igual. Os alunos revelam muita dificuldade em operar com os conceitos de peso e de volume como entidades distintas entre si, e independentes do contexto dos fenómenos em estudo no momento.

Excerto do diário

Nesta altura senti necessidade de sublinhar a distinção entre peso e volume, dado que entre os alunos parecia existir essa confusão. Fiz referência a objectos familiares com o mesmo peso e diferentes volumes, por um lado, e objectos com o mesmo volume e diferentes pesos, por outro lado (…). Alguns alunos compreendem que há diminuição do volume quando o papel de alumínio se afunda, pois, a bolinha foi apertada e ficou mais pequena. Mas o Tiago insiste que isso é só nessa matéria. A fim de conhecer melhor as ideias dos alunos quanto ao peso, pergunto: – Ao apertar a bolinha de papel de alumínio tirei papel? Todos respondem que não, em coro. Pergunto se acrescentei papel e todos respondem também que não. – Então que podemos dizer acerca do peso, antes e depois de apertar a bolinha? É o mesmo, fica maior ou menor depois de apertada? O João (10 anos) conclui que o peso fica igual porque não fica com mais nem com menos papel. Alguns alunos manifestam a sua concordância. (…) Circulo pelos grupos e observo um aluno que comprime a bolinha de papel de alumínio, pisando-a com o sapato; observo ainda que alguns tentam dar à folha de alumínio afundada a forma inicial para a fazerem flutuar de novo. Entre os diversos comentários registo o seguinte: A bolinha amassada fura melhor a água. Pergunto porquê. Um aluno responde: Porque o peso uniu-se no mesmo sítio. Estamos perante uma noção intuitiva de densidade.

[Continuação em Flutuar-afundar: concepções da criança V]

domingo, 10 de maio de 2009

FLUTUAR-AFUNDAR: concepções da criança III

[Continuação de Flutuar-afundar: concepções da criança II]

5. Objectos com a mesma quantidade de material
1 podem flutuar ou não

Na discussão de turma (Sá, 1996), em dado momento os alunos oscilam entre o esquema leve-flutua/pesado-afunda, por um lado, e a ideia de que flutuar ou não é uma característica inerente ao material2 de que é feito objecto, por outro. Decidimos então promover situações de aprendizagem em que os alunos investigariam se objectos feitos de um mesmo material e com a mesma quantidade de material, logo com o mesmo peso (num determinado lugar), poderiam ter diferentes comportamentos na água.

Investigações realizadas em duas turmas do 4º ano de escolaridade

Tenha-se na devida consideração o facto de que tudo o que se relata a seguir ocorreu em turmas do 4º ano, já na parte final de uma intervenção pedagógica de cerca de 54 horas, distribuídas ao longo do ano lectivo, durante a qual os alunos foram treinados a pensar cientificamente no contexto de actividades experimentais, relacionadas com diversos tópicos científicos do programa do 1º ciclo (Sá, 1994, 2002; Sá, 1996).

A) – A bolinha de papel de alumínio

Questão 1

– Que acontecerá a esta bolinha de papel de alumínio se a colocarmos na água?

A maioria dos alunos é de opinião de que a bolinha de papel de alumínio se afunda. Esta previsão fundamenta-se no facto de tal objecto ter a aparência de ser feito de metal. Provavelmente estamos em presença da ideia de que é característico dos objectos de metal afundarem na água.

Os alunos realizam a actividade experimental e constatam que as evidências contrariam as suas previsões.

Questão 2

– Haverá alguma maneira de fazer com que o papel de alumínio passe a comportar-se de outro modo na água?

As ideias são escassas, mas são apresentadas algumas sugestões: pôr menos água; esticar a folha; a plasticina plana na água segura melhor. A Rita (9 anos) apresenta uma ideia bastante elaborada: A bola de alumínio se tiver ar flutua (situação inicial), não está completamente amassada. Esta explicação para a flutuação contém implicitamente uma ideia sobre o que fazer para que a bolinha se afunde. - Que fazer então para a bolinha afundar? – perguntei. Vamos amassá-la mais – respondeu um aluno.

Uma ideia, já anteriormente identificada, surge de novo: a quantidade de água influencia o fenómeno (pôr menos água). Nas palavras dos alunos estão implícitas novas ideias quanto aos factores que interferem no fenómeno da flutuação:

a) a superfície de contacto com o líquido (esticar a folha; a plasticina plana…)
b) ter ar ou não ter ar (a bola de alumínio se tiver ar flutua, não está completamente amassada).

Os alunos são convidados a comprimir bem a bola folha de papel de alumínio e a verificarem experimentalmente o seu comportamento. Depois da observação de afundamento segue-se um processo de reflexão.

Questão 3

– O peso da folha de alumínio ficou diferente?


1 Do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo da criança, a noção de conservação de quantidade de matéria não é equivalente à noção de conservação do peso, como veremos mais adiante.

2 Note-se que em rigor, quando falamos de materiais ou substâncias puras, a densidade é uma sua característica que determina o seu comportamento na água. A densidade do ferro é superior à densidade da água, logo uma porção maciça de ferro afunda-se; a densidade da madeira é inferior à densidade da água, logo um fragmento de madeira flutua. Mas na abordagem destes fenómenos com as crianças devemos centrar a nossa atenção no comportamento dos objectos, cujas densidades médias dependem não só do material de que são feitos, mas igualmente do facto de terem ou não cavidades interiores ou concavidades.


PS:.[Continua em Flutuar-afundar: concepções da criança IV]